Boitempo lança novo romance de Ivone Benedetti: Cabo de Guerra
História invoca fantasmas da sociedade brasileira: os dois polos da ditadura militar
Na diminuta estante da ficção ambientada nos anos de chumbo, Cabo de guerra destaca-se por erigir em personagem central um “cachorro”. Assim era designado pela repressão o militante da luta armada que, traindo seus companheiros, punha-se a seu serviço como espião. Simulando uma fuga da prisão, ou outro truque qualquer, o cachorro retornava a sua organização para coletar informações que passava a seu controlador. Poucas expressões do jargão da ditadura foram tão pertinentes quanto esta, de duplo sentido, exprimindo ao mesmo tempo subserviência canina e baixeza de caráter.
A formação de um cachorro, seu treinamento e sua reintrodução na organização de origem já como agente, tornou-se uma das mais sofisticadas operações dos órgãos de repressão, o polo oposto da sanguinária tortura. Infiltrados em quase todas as organizações clandestinas, os “cachorros” desempenhariam papel crucial na liquidação final dos militantes dessas organizações, decidida pelos militares a partir de 1973, ao se vislumbrar no horizonte o fim da ditadura. Liquidar de vez os militantes passa a ser a prioridade da repressão, ainda que às custas de expor a identidade dos seus “cachorros”. A forma utilizada foi a do “desaparecimento”. Os militantes eram sequestrados e assassinados à margem do sistema legal de repressão, e seus corpos dispostos de modo tal que jamais fossem encontrados.
O “cachorro” de Cabo de guerra é um tipo medíocre, que se deixa levar por qualquer um. Um pobre de espírito e um fraco de caráter. É mais por acaso do que por convicção que ele chega à luta armada e também por acaso se torna informante das forças de repressão. Nem foi preciso torturá-lo. A história é narrada em primeira pessoa por ele próprio, que intercala aos episódios da trama central, recordações de uma infância traumática, na qual testemunhou a morte violenta do pai. Sofre, por isso, surtos alucinatórios.
O título remete à disputa que se deveria dar na mente de um “cachorro” entre a força maligna que o leva à traição, alimentada basicamente pelo oportunismo e o instinto de sobrevivência, e uma suposta força contrária oriunda do impedimento moral de todo humano à traição e à desonra, mas quase inexistente no sinistro personagem deste Cabo de guerra e obviamente derrotada.
No final da década de 1960, um rapaz deixa o aconchego da casa materna na Bahia para tentar a sorte em São Paulo. Em meio à efervescência política da época, que não fazia parte de seus planos, ele flerta com a militância de esquerda, vai parar nos porões da ditadura e muda radicalmente de rumo, selando não apenas seu destino, mas o de muitos de seus ex-companheiros.
Quarenta anos depois, ainda é difícil o balanço: como decidir entre dois lados, dois polos, duas pontas do cabo de guerra que lhe ofertaram? E, entre as visões fantasmagóricas que o assaltam desde criança e a realidade que ele acredita enxergar, esse protagonista com vocação para coadjuvante se entrega durante três dias a um estranho acerto de contas com a própria existência. Assistido por uma irmã devota e rodeado por uma série de personagens emersos de páginas infelizes, ele chafurda numa ferida eternamente aberta na história do país.
Narradora talentosa, Ivone Benedetti tem pleno domínio da construção do romance. Num texto em que nenhum elemento aparece por acaso e no qual, a cada leitura, uma nova referência se revela, o leitor se vê completamente envolvido pela história de um protagonista desprovido de paixões, dono de uma biografia banal e indiferente à polarização política que tanto marcou a década de 1970 no Brasil. Essa figura anônima será, nessa ficção histórica, peça fundamental no desfecho de um trágico enredo.
Neste Cabo de guerra, são inúmeras e incômodas as pontes lançadas entre passado e presente, entre realidade e invenção. Para mencionar apenas uma, a abordagem do ato de delação política não poderia ser mais instigante para a reflexão sobre o Brasil contemporâneo.