Espetáculo da Broadway sobre escassez de água não poderia ser mais atual
Por Walace Toledo
Fotos e Vídeos Alana Calbente
E se uma seca de duas décadas causasse uma terrível falta de água, fazendo com que toda a atividade sanitária da população fosse realizada em banheiros públicos, controlados por uma megacorporação ardilosa?
Por esse mote discorre a história de “Urinal, o musical”. A montagem original estreou em Nova York em 2001, “Urinetown”, de Greg Kotis e Mark Hollmann, foi vencedora de três prêmios Tony. Sua versão brasileira entrou em cartaz no Teatro Núcleo Experimental, em São Paulo, no último fim de semana. Dirigido por Zé Henrique de Paula, espetáculo reúne treze atores e cinco músicos no elenco.
A peça inicia com uma saudação de boas vindas do Policial (Daniel Costa), o narrador, assistido pela moradora de rua Garotinha (Luciana Ramanzini). De acordo com o que ambos relatam, a seca fez com que banheiros particulares se tornassem impensáveis. Para controlar o consumo de água, as pessoas devem pagar para usar essas dependências, administradas pela Companhia da Boa Urina (CBU), comandada pelo Patrãozinho (Roney Facchini). Há leis severas garantindo que o povo pague para fazer xixi, e se elas forem quebradas, o culpado é enviado para uma suposta colônia penal chamada Urinal, de onde os criminosos jamais retornam.
Diálogos entre o Policial e a Garotinha permeiam toda a trama, o tempo para e eles discutem tanto sobre a própria estrutura do musical, quanto os obstáculos enfrentados pelos personagens. A rotina do Bonitão (Caio Salay), funcionário da Conveniência Pública nº 9 é quebrada após a chegada da meiga Luz (Bruna Guerin), filha do Patrãozinho, à CBU. Amável e sempre orientando a todos que sigam o que o coração diz, a jovem conquista o Bonitão. Com o aumento da taxa de uso dos banheiros, ele segue o conselho da amada e dá início à revolução.
(da esq. para dir.) Gabriel Malo (coreógrafo), Inês Aranha (preparadora de elenco), Fernanda Maia (diretora musical) e Zé Henrique (diretor) receberam a imprensa para coletiva na terça (31)
Há dez anos no papel, Zé Henrique e Fernanda decidiram colocar o musical em prática durante as últimas eleições, onde o assunto ‘crise hídrica’ veio à tona bem forte. “É como se a peça tivesse pedindo para ser montada (…) aliar crítica social, uma questão política muito séria, com uma forma teatral que é puro entretenimento. Urinal consegue fazer isso de uma maneira que nos interessou demais e muito instigante”, conta o diretor. Não foi preciso fazer nenhuma mudança na dramaturgia para aproximar da nossa realidade. A mera tradução da peça fez emergir o tema.
Embora seja um musical americano, quem em sua trajetória surgiu no circuito alternativo e depois foi levado à Broadway, ainda é considerado um espetáculo meio maldito, esquisito e marginal. Esse tratamento tem tudo a ver com a forma de construção, inspirado nos cabarés alemães do começo do século XX, de atmosfera sombria, pós-apocalíptica e distópica à la George Orwell e Aldous Huxley, de um encaminhamento da sociedade que deu errado.
Interessante apontar que os atores em cena não tinham experiência em musicais, assim como a preparadora Inês Aranha, acostumada com o teatro dramático. “Essa equipe que temos aqui são atores, não são bailarinos nem cantores. Eles sabem cantar e estão dançando. Meu trabalho foi fazer que os personagens cantassem e dançassem. Não tivemos grandes técnicas de ballet e dança, e sim entender que a partitura dançada é uma partitura de ações. A coreografia é uma extensão da própria atitude do personagem em necessidade de se expressar”, explica Inês, que elaborou os movimentos com o experiente Gabriel. Malo trouxe à equipe seu expertise de atuação em grandes musicais, como West Side Story e Hairspray, além de experiências no mercado internacional.
O espaço pequeno, o teatro possui plateia de 56 lugares, traz mais atenção às vozes do elenco. Segundo a diretora musical, o público está perdendo o hábito de ouvir vozes que não sejam tratadas por recursos tecnológicos, “a gente tá fazendo um musical quase acústico”. Esses elementos de crueza e autenticidade vocais combinam com aquilo que a peça propõe, que “é realmente revelar a qualidade do timbre de cada ator. Vocês ouvirão vozes mais metálicas, arranhadas, delicadas, e isso tem a ver com a identidade vocal individual, que está em consonância com aquele personagem”, completa Fernanda.
Nesta segunda cena, abertura do segundo ato, Luz foi sequestrada pelos rebeldes. Em seguida, o Bonitão chega ao esconderijo para acalmar os ânimos e não deixar que nada aconteça com sua amada.
A montagem do espetáculo pelo Núcleo Experimental põe em questão a atual infraestrutura do teatro musical no país. Ideia vinda da geração dos anos 2000, de Les Misérables, de que um musical da Broadway precisa de uma grande produção, com palco polivalente, orquestra gigante e cheio de recursos se mostra defasada. “Agora estamos num momento de maior conscientização, que ‘teatro é teatro’, ‘música é música’, e existem milhares de maneiras de fazer isso. Então, as pessoas estão mais interessadas, mesmo os jovens que pegaram essa geração de musical, a conhecer obras que não dependam de um cenário mudando magicamente, e simplesmente da história que tem a contar. É uma ótima fase, e eu acho Urinal um bom impulso; sim “podemos fazer um musical da Broadway de forma ‘alternativa’”, conclui Malo.
Características artesanais marcam a produção da montagem. Zé Henrique salienta que a grande maioria dos recursos materiais usados na peça (material de cenário, figurino e iluminação) foi reciclada de doações recebidas e acervo do grupo. O material recebeu tratamento adequado e foi customizado às necessidades da produção, gerando aproveitamento integral de recursos e mínima geração de resíduos durante sua execução.
Ainda integra o elenco Adriana Alencar, Bia Bologna, Fábio Redkowicz, Gerson Steves, Nábia Vilella, Paulo Marcos Brito, Thiago Carreira e Thiago Ledier. Além dos músicos Rafa Miranda (Piano), Clara Bastos e Pedro Macedo (Baixo), Rafael Heiss e Abner Paul (Bateria), Flávio Rubens (Clarinete e Saxofone) e Valdemar Santos Nevada e Evandro Bezerra (Trombone).
“Urinal, o musical” foi realizado pelo Núcleo Experimental com recursos provenientes do Prêmio Zé Renato de apoio à produção e desenvolvimento da atividade teatral para a cidade de São Paulo.
Com presença de familiares, amigos, outros atores de musicais: Tiago Abravanel (Tim Maia) e Fabiano Nascimento (Rita Lee Mora ao Lado), e público em geral a estreia foi um sucesso. Não se engane, não é por ser uma comédia musical que é uma história feliz, já diz o Policial no primeiro ato. Garotinha e a caricata dupla policial rendem boas risadas, assim como a adorável Luz. Um espetáculo que surpreende e deixa os espectadores no caminho para casa pensando em muitas questões sobre o modo de vida insustentável da sociedade atual.
SERVIÇO
Local: Teatro Núcleo Experimental – Rua Barra Funda, 637 – Barra Funda, São Paulo. Tel: 3259-0898. Capacidade 56 lugares.
Valores e Horários: R$ 40,00 (inteira) e R$20,00 (meia). Sextas, Sábados e Segundas, às 21h. Domingos, às 19h. Até 6 de julho de 2015. OBS: Entrada gratuita às sextas-feiras, com ingressos distribuídos na bilheteria do teatro uma hora antes do início da sessão.
Duração: 1h50 minutos (mais 15 minutos de intervalo).
Recomendação: 10 anos.