A criação musical na era tecnológica




O reflexo das novas ferramentas e a difusão da música na rede
Por Renata Souza

Toda época é marcada por conflitos e conquistas. Cada geração leva consigo lembranças de cenários peculiares, vividos somente por quem compartilhou o mesmo espaço/tempo. E, cada geração, jura ter vivido os melhores dias da história.

Apresentação banda Musidora
Possivelmente, todos nós temos lembranças da avó contando histórias que sempre vinham acompanhadas de um singelo “na minha época…”
Nesse sentido, a produção cultural também revela muito sobre o tempo passado e presente de cada geração. A criação artística, a moda, a literatura e a música, por exemplo, são capazes de remontar cenários de uma época inteira. 
No documentário de Vladimir Carvalho, Rock Brasília – A Era de Ouro, lançado em 2011, é explicita essa relação marcante da música como caracterização de uma época. O filme conta a história de jovens, filhos de intelectuais, diplomatas e políticos brasileiros que chegaram à capital federal nos anos 80 e, influenciados pelo punk, recém descoberto nos Estados Unidos, faziam música que retratavam suas posições ideológicas. O resultado foi o nascimento de grandes nomes do rock nacional, como Legião Urbana, Plebe Rude e Capital Inicial.
Assim, como o exemplo do rock de Brasília dos anos 80, todo movimento musical traz em sua produção referências sociais, políticas, culturais e pessoais que refletem a época na qual está inserido.
Vivemos em um período marcado pela globalização, pelo pluralismo cultural, pelo consumismo e, principalmente, pela expansão tecnológica. A música, como toda a criação artística, precisou se adaptar às novas ferramentas para acompanhar as mudanças de sua época.
O sociólogo espanhol Manuel Castells, em sua obra Sociedade de rede, descreve bem esse novo cenário, guiado pelas novas tecnologias. No livro, que é o primeiro de uma trilogia denominada a Era da Informação, o autor relata como esses novos mecanismos interferem nas estruturas sociais e afirma que vivemos na cultura da virtualidade real, onde as relações humanas se dão, cada vez mais, em um ambiente multimídia.
Assim, muitos têm a música como paixão, outros como vocação e alguns como profissão. Pouco mudou nesse sentido. Esse sentimento de ligação com a música ainda é, provavelmente, o mesmo da turma de rock dos anos 80, em Brasília. No entanto, o que muda com a era da tecnologia é o modo de se fazer, de se divulgar e de se consumir música. 
O primeiro impacto da internet na produção musical se deu na indústria fonográfica. Com o surgimento das novas tecnologias e com a facilidade com que músicas são disponibilizadas na rede, houve uma forte mudança no mercado dito formal e um déficit significativo nas grandes gravadoras, o que não significou necessariamente uma crise no meio musical, já que novas bandas e a cena independente encontraram na internet e na tecnologia uma força importante para divulgação e criação de conteúdo.
Nesse sentido, não seria exagero afirmar que a maior mudança artística da nossa época é a difusão em alta velocidade, que impulsionou o surgimento de novos hábitos de produção e do próprio consumo de música.
O contra ponto é que, embora em um momento histórico com facilidade de criação e difusão de conteúdo, a sociedade esteja vivendo um período de subjetividade e superficialidade, características que para muitos críticos musicais, refletem na produção artística, diminuindo a qualidade do conteúdo. O paradoxo é que mesmo que nunca tenha se criado tanto, nunca se viu tanto conteúdo ruim sendo dissipado pela internet.
Uma justificativa para isso seria o fato de que, em nossa época, a internet potencializou a valorização social da imagem. Conforme a mercantilização e o consumismo promovem cada vez mais a aparência em seu valor máximo, a criação artística se vê, muitas vezes, obrigada a se unir a padrões de imagem e exibição.

Assim, a originalidade e criatividade ficam muitas vezes a mercê das opiniões, teorias e modelos do momento.
No entanto, é inegável que nesse novo recorte de mundo, graças à internet, é possível, por exemplo, que um grupo de amigos montem uma banda, gravem seu próprio álbum, com autonomia e investimento próprio, façam a divulgação através de amigos e, na rede, troquem experiências e informações sobre o mercado com outras bandas, encontrem lugares para se apresentar, tudo de forma independente e sem ajuda de um grande veículo de comunicação.
A banda paulistana Musidora, formada há pouco mais de um ano, conhece bem esse processo. O grupo nasceu da junção de quatro amigos, que tinham em comum o contato com a música desde a adolescência. Começaram a ensaiar e pouco tempo depois, gravaram seu primeiro EP, com quatro canções autorais, de forma totalmente independente e já se preparam para gravar o próximo. Desde sua formação, a banda vem fazendo shows e divulgando o trabalho, com a ajuda da internet.
Na contramão de muitos grupos que trazem suas referências apenas do passado, a  Musidora não só é influenciada por novos sons, como acredita na atual safra do rock. O quarteto tem em comum o gosto por bandas que surgiram a partir dos anos 2000, como os estadunidenses do Kings of Leon e os britânicos do Arctic Monkeys.
“Achamos importantes olhar para referências atuais. As (bandas) que estão fazendo um som moderno e bom, estão começando a ganhar espaço na mídia e na cena independente”, comenta o baterista, William Nunes. 
Sobre a importância da internet para a divulgação do trabalho a banda acredita que embora seja importante, não é o único caminho: “É fundamental, mas não o principal, vemos como um complemento. A divulgação real acontece nos shows e com material de qualidade gravado, esse é o nosso foco”, afirmam.
Marcelo Costa, jornalista, dedicado ao segmento cultural há mais de 14 anos, criador da página Scream e Yell e dono de uma coleção com mais de 10 mil discos, fala sobre a importância da internet para novas bandas: “Hoje em dia é vital. Fiz essa pergunta para cinco artistas que colocaram seus discos para download gratuito e todos eles, com veemência, disseram que o download os ajuda não só a vender shows, mas também a vender discos”, conta.

Marcelo Costa // Foto: Acervo pessoal
O jornalista, que é responsável pela curadoria do projeto Prata da Casa, do Sesc Pompéia, também concorda que o cenário atual é promissor e tem sim muita qualidade: “A lista (de boas bandas) é enorme! O problema é a falta de pessoas e veículos que as valorizem. A boa música está cada vez mais ampla no Brasil, as pessoas precisam apenas descobrir isso”.
Marcelo reforça a ideia de que, embora a rede facilite a divulgação de novas bandas, o público ainda não busca conhecer e valorizar o cenário musical independente: “Os piores obstáculos são a falta de bons espaços para as bandas se apresentarem e um público interessado em conhecer o novo. A galera tá mais interessada em azaração, em forró e barzinho de cover da Vila Madalena e da 13 de maio do que ouvir coisas instigantes. É uma pena”, conclui.
A banda Musidora, habituada a se apresentar em bares de São Paulo, também ressalta a dificuldade de encontrar bons espaços para tocar: “O maior desafio é conseguir lugares bons, com qualidade de som e público para tocar, mas o legal é que pessoas que não são do nosso círculo de contato gostam das músicas e elogiam a banda”, contam.
Rafael Sehn, professor de música e guitarrista da banda Anjos do Hanngar, tem a vida ligada à música desde muito cedo. Com avô, tio e mãe músicos, Rafael cresceu em um ambiente favorável à escolha da profissão e viu sua geração viver essa transição do vinil para os downloads. Para o músico a internet possui, ao mesmo tempo, vantagens e desvantagens para o cenário musical: “O bom é que todo mundo ganhou o mesmo espaço para divulgar seu trabalho, mas isso não traz estabilidade, nem para as bandas, nem para o público consumidor. As coisas acontecem muito rápido dentro da internet, surge hoje, acaba amanhã”.

Rafael Sehn// Foto: Acervo Pessoal
O músico também concorda que há muita coisa boa surgindo, mas admite, com certa tristeza, que o público ainda não consome conteúdo de qualidade. “O cenário musical é reflexo do público e da época. No Brasil, o povo não é nada seleto quanto a isso. Nós exportamos o que temos de melhor e na hora de importar, pegamos o que é ruim. O público não pensa muito nas escolhas na hora de consumir música”, diz Rafael.
O guitarrista afirma ainda que é preciso ter a cabeça aberta e procurar por conteúdo de qualidade: “É óbvio que essas músicas não estão nas rádios ou em programas de televisão, mas elas existem! Tem coisas ótimas no nosso cenário musical, mas pouco interesse das pessoas em consumir”, conclui.

Como afirmam Marcelo e Rafael, temos um mercado promissor, com conteúdo de qualidade sendo criado, mas com um déficit de público, que acaba por consumir as mesmas coisas.
Fato é que a internet mudou a vida das pessoas. O meio digital alterou a maneira como nos relacionamos, produzimos e compartilhamos conteúdo. Ninguém mais consome passivamente, recebendo apenas o que é direcionado a cada segmento pelos meios de comunicação ou pela indústria cultural.
Nossa geração se tornou também produtora e disseminadora de conteúdo e como em nenhum outro período histórico, a expansão tecnológica nos permite conhecer diversos nichos culturais.
O que se espera é um olhar mais amplo do público na produção cultural de nossa época, para que toda a autonomia de criação e o advento da internet faça realmente a diferença na hora de se consumir música.   

Capa EP Banda Musidora 
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