Diga que você já me esqueceu em cartaz no Teatro Viradalata




Num ritual de vida e morte, Dan Rosseto percorre os limites entre o desejo e a loucura. 

“O mundo é a casa errada do homem […] o mundo é um péssimo anfitrião.” (Nelson Rodrigues)

Por colaborador Paulo Afonso Asencio

Não é por acaso que “Diga que você já me esqueceu”, espetáculo escrito e dirigido por Dan Rosseto, tem sua ação durante os efeitos de uma terrível tempestade. A visão amarga e pessimista do mundo como um local inóspito, se verifica com certa constância na obra e nas ideias rodrigueanas, o homem em conflito com as naturezas, a humana e a que o cerca. 

Foto: Natalia Angelieri
Foi exatamente na biografia e na obra, no homem e no autor Nelson Rodrigues que Rosseto encontrou a inspiração de seu texto. O autor se aventura num rico e sombrio estudo das complexidades nas relações humanas, utilizando-se basicamente de três de suas influências, que acabam por desaguar numa mesma foz: as personagens densas e perturbadoras da obra de Nelson, num espectro que vai desde “Engraçadinha” até a ficção folhetinesca de seu alter-ego Suzana Flag; O expressionismo, não apenas a escola, mas a tendência estética (que influenciou desde a ópera até o cinema) que fomentou-se entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Um período em que o anseio pela descoberta, o desejo de liberdade e o medo do que estava por vir, deixou ao mundo um legado de vanguardas que permanecem inquietantes até hoje. E o samba-canção da década de 1950, com suas letras passionais, carregadas de promessas de vingança, de paixões incendiárias, inclusive daquelas que quase ninguém ousava dizer o nome. Parece arriscado. E é. Mas Rosseto consegue essa alquimia com raro equilíbrio e coesão ao manter suas crias presas nessa zona crepuscular, nesse “entre-guerras” interior. 

Os conflitos entre vida e morte, entre o que é real ou ilusão, tão presentes em Nelson, com seus fantasmas e suas obsessões; A canção romântica brasileira, impregnada de sexualidade e erotismo em personagens boêmios, marginais, numa época ainda de grande moralismo e repressão. E a estética expressionista, especialmente a alemã, com sua plasticidade tortuosa e delirante, e sua finalidade totêmica que pregava o instintivo em reação ao mundo asséptico e cerebral. Claro, Antunes Filho em seus “eternos retornos” a Nelson, já bebe há muito dessa fonte, mas Rosseto tem a ousadia de colocá-la numa obra autoral. 

Foto: Natalia Angelieri
O espetáculo começa e termina como um ritual: após um prólogo onde uma espécie de fauno (Daniel Morozetti, ótimo) fala sobre o beijo como forma de subversão, entram em cena uma noiva, um cortejo com damas de honra pra lá de sinistras, uma mortalha vazia que é içada em cena. Um casamento? Uma cerimônia fúnebre? Sim, puro imaginário de “Vestido de Noiva”, e no decorrer do espetáculo, vamos reconhecendo, com curiosidade e surpresa, alguns personagens tangentes ao universo rodrigueano, inclusive nos nomes com os quais o autor batizou-os. 

A anfitriã, mãe do noivo, Dona Querubina (Juan Manuel Tellategui), por exemplo, traz tonalidades de várias personagens presentes em “Vestido”, como Madame Cleci, ou mesmo a arrepiante “mulher de outra época” que aparece no velório da cafetina durante a madrugada vazia. Quando a luz vai ficando menos nebulosa, observamos que todas as personagens trazem olhos e “bocas molhadas e ainda marcadas”, como na furiosa e dolente declaração de amor da canção de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos que inspirou o título do texto.

A ação se passa nos momentos que antecedem o casamento de Lúcia e Sílvio. A maior parte dos convidados não consegue chegar à casa da matriarca por conta de um grande temporal. E os participantes da cerimônia que lá se encontram, por conseguinte, permanecem ilhados. Nesse ambiente de tensão, nessa espécie de trem-fantasma onde quem entra não sai, verdades incômodas começam a aparecer. A situação limítrofe de criaturas movidas por anseios e desejos até então inconfessos, começam a se revelar. Traições, assassinatos, incestos, desnudam as circunstâncias de um trágico jogo de poder.

Foto: Natalia Angelieri
Exacerbado, mas eloquente, a maioria do elenco não economiza nas tintas, em tons bastante densos. Pode-se gostar ou não em alguns momentos do timbre exagerado das primas Dália e Selma (Ana Clara Rotta e Marjorie Gerardi) numa constante tração de desejo e repulsa; pode-se achar até que há algum excesso na figura de Teresa, irmã do noivo, enlouquecida de desejo pelo próprio. Mas que ninguém pense que esses excessos são frutos de alguma negligência ou falta de percepção do diretor. Do desmazelo das pernas tortas de Selma à chupeta que Teresa (Larissa Ferrara) suga voluptosamente, tudo ali é absolutamente refletido e intencional. Assim como no movimento expressionista as figuras apareciam deformadamente exageradas a fim de que expressassem sua realidade interior, as figuras mais ou menos dantescas (sem trocadilhos) criadas pelo autor e suas ações têm esse objetivo incômodo. 

Mas há desvãos, núcleos que respiram o mesmo ar pesado, mas que manifestam sua realidade agônica de forma diversa: Atriz de infinitas possibilidades, Carol Hubner (ótima), por exemplo, compõe sua Lúcia num formalismo quase litúrgico. Sua enigmática figura parece flutuar em cena, embora para um espectador mais atento, um detalhe de seu belo figurino revele a charada que sustenta parte da trama. E quando em meio à agudeza da trilha sonora explode a letra de “Negue” revelando um momento de ternura entre amantes (“o amoroso é fiel até quando mente”), usando apenas uma combinação vermelha, Hubner ganha uma breve e linda cena de dança ao som dos apelos do coro provocador. Pedro e Nestor (Daniel Morozetti e Nalim Junior) conseguem ser uma interessante e divertida síntese de alguns personagens masculinos da galeria rodrigueana. No contraste entre os amigos, um devasso e o outro, um virgem onanista, pode-se reconhecer muitos Herculanos, Patrícios, e outros tipos marcantes que irmanam machismo, cinismo, recalque e hipocrisia. Há alguns momentos engraçados entre os dois que são um respiro em meio a tanta tensão.

Foto: Natalia Angelieri
E apesar de todo elenco ter seus momentos de brilho, quem rouba a cena é Pablo Diego Garcia, excelente na pele do noivo Silvio, o papel mais complexo do espetáculo: alvo tanto de desejos como de interesses de personagens que o cercam obsessivamente, e que inicialmente fogem à sua percepção, Silvio sofre a ação das camadas de mentira que vão se desvelando, acordando a tal “ferocidade adormecida” da qual Nelson tanto falava, exigindo do ator uma atitude que vai, com vertiginosa rapidez, de vítima torturada pela culpa a algoz de seus obsessores. Dono de uma voz rica em nuances, Garcia faz esse trânsito com impressionante habilidade, e talvez seja nele que Rosseto exercite um dos lados mais marcantes de suas encenações, em que o diretor brinca, sem pudores, com seu lado cinéfilo. Na interessante e tresloucada movimentação cênica de Silvio, bem como no olhar febril que lança à plateia ao final, vê-se a influência do cinema expressionista alemão, há indícios de “O Gabinete do Dr. Caligari” de Robert Wiene, da “sinfonia de horrores” de Murnau e todo o imaginário bizarro e sombrio de personagens tão inovadores que ecoam sua inusitada modernidade até hoje. 

Banhado por uma deslumbrante luz de Nicolas Manfredini, e com uma simples, mas atraente e bem acabada direção de arte de Luiza Curvo, “Diga que você já me esqueceu”, reitera o talento e a singularidade que existe no hibridismo de Rosseto, hábil em cruzar ideias mesmo que pareçam incompatíveis entre si. Entre o cortejo funestro e a mortalha que finalmente desce para receber seu corpo, são mais de cem minutos, mas que passam rápido. 

Foto: Natalia Angelieri
E então, pronto para participar do enlace entre Lúcia e Silvio? Os noivos adorariam a sua presença…

Ficha Técnica
Diga que Você já me Esqueceu
Texto e direção de Dan Rosseto
Com Carol Hubner, Pablo Diego Garcia, Daniel Morozetti, Ana Clara Rotta, Marjorie Gerardi, Larissa Ferrara, Juan Manuel Tellategui, Nalin Junior. 
Desenho de luz de Nicolas Manfredini
Direção de arte de Luiza Curvo
Direção de produção de Fabio Camara
Realização: Applauzo Produções e Lugibi Assessoria de Imprensa e Produções

Serviço
Teatro Viradalata 
Endereço: Rua Apinajés, 1387 – Sumaré, São Paulo – SP, 01258-001
Telefone: (11) 3868-2535
Sábados, às 21:30h, e domingos às 19h.

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