O que uma reunião de condomínio e um ataque de zumbis pode ter em comum? Muito mais do que se imagina. Esses foram alguns eventos que serviram de base para que a Cia de Teatro Acidental criasse o espetáculo “E o que fizemos foi ficar lá ou Algo assim“, que estreia no próximo dia 24 de janeiro, quinta-feira, às 20 horas, na Oficina Cultural Oswald de Andrade. O grupo buscou editais ou apoio financeiro nos últimos três anos e, mesmo sem ter sido contemplado, continuaram trabalhando coletivamente e realizam essa estreia de maneira independente, como uma maneira de mostrar a sua resistência e vontade de fazer cultura. O espetáculo tem entrada gratuita.
Com uma encenação e direção cênica assinada pela própria companhia, o espetáculo (o sexto do currículo do grupo) mostra um grupo de vizinhos que se encontra num espaço fechado. O que de início parece ser uma simples reunião de condomínio, aos poucos ganha ares inquietantes. Sobre quem discutem os participantes? O que é que os espreita de lá de fora? Descobrindo-se presos em um filme de terror, só lhes resta tentar descobrir como escapar dessa sinistra ficção.
São duas as principais fontes para a construção da dramaturgia da peça. No primeiro ato, o grupo faz uso de relatos de moradores dos subúrbios franceses colhidos no livro A miséria do mundo, coordenado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, entrevistas que apresentam relações e tensões entre moradores que coabitam um mesmo espaço e têm suas diferenças ressaltadas pelo convívio.
Já o segundo ato reproduz o roteiro de filmes de zumbis, sobretudo do recém-falecido diretor George Romero, mestre do gênero. Nesses universos imaginários, o Outro é sempre visto como ameaça monstruosa, projeção invertida do próprio narcisismo. A linguagem melodramática comum do cinema hollywoodiano recebe um tratamento crítico do grupo. É ela que ajuda a criar uma atmosfera fantasiosa que sustenta a ideologia individualista e a lógica dos condomínios em cena.
Em ambos os atos, o material primário recebe tratamento por parte da companhia, trabalhando coletivamente para retirar as referências específicas a cada um (o contexto francês ou os zumbis), criando o fantasma de um inimigo indeterminado, e por isso tanto mais assustador, e também certa dúvida a respeito dos próprios condôminos.
Referências importantes para o espetáculo são ainda o livro Mal Estar, Sofrimento e Sintoma, de Christian Dunker, o texto O inquietante, de Sigmund Freud, além de revistas internas, avisos, regulamentações e grupos de Whatsapp de condomínios brasileiros. O momento político desses últimos anos, que gerou uma polarização radical em toda a população, bem como declarações de ódio e preconceito.
Do ódio ao medo
“E o que fizemos foi ficar lá ou Algo assim” é a continuação da pesquisa da Cia de Teatro Acidental iniciada em O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer (que estreou em 2014, com direção de Carlos Canhameiro). Naquela época, o grupo refletia sobre o ódio como afeto fundamental para compreender a política contemporânea no país. Durante as apresentações, que também aconteceram na Oswald de Andrade, houve uma série de palestras com alguns nomes que refletiram sobre a temática central da peça. Em uma dessas atividades, o filósofo Vladimir Safatle deu a sugestão de pensar o ódio como secundário em relação ao medo para compreender o papel dos afetos no campo da política.
A ideia se complementou com a fala do psicanalista Christian Dunker, que apresentou sua ideia de uma “lógica de condomínio” que organizaria a sociedade brasileira contemporânea. Foi a junção dessas duas fala que gerou o novo projeto da Acidental.
Ao olhar para o medo e a estrutura da sociedade brasileira contemporânea, os artistas e criadores da Cia de Teatro Acidental sentiram a necessidade de uma construção cênica que questionasse algumas amarras da dramaturgia, buscando abandonar personagens, protagonistas e outras estruturas de texto e roteiro.
“A montagem é centrada na execução coletiva de textos não-dramáticos, de forte carga política. O coro de atores, treinado na enunciação de ritmo intenso e ênfase na retórica mais do que na emotividade dramática, propõe um coro tenso e contraditório, e a transcriação cênica de certa convivência e (não-)diálogo bastante próprio de nossos dias, tanto em festas de família quanto em posts das redes sociais”, explica o ator Artur Kon, que assina a dramaturgia, que foi construída em colaboração com o restante da equipe.
A direção é assinada pelo elenco, formado ainda por Cauê Gouveia, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana Otero e Mariana Zink. A estrutura da encenação é bastante simples, organizada pelos modos de discurso presentes na dramaturgia: um círculo de cadeiras de plástico indica a situação da reunião de condomínios (sugerida mas nunca plenamente realizada) e uma mesa com uma garrafa térmica de café e biscoitos permite a pausa (onde se revelam discursos calados na reunião). Há ainda um microfone abre espaço para o discurso público, oficial, endereçado para fora do espaço privado.
Conforme o enredo caminha para uma situação fantasiosa de horror, a cena se desconstrói e começa a ser atravessada por elementos que rompem a impermeabilidade das paredes do condomínio: objetos misteriosos, jogos de luz, interrupção da cena pela música e comportamentos aberrantes perturbam essa vizinhança aparentemente normal.
SERVIÇO:
Estreia dia 24 de janeiro, quinta-feira, às 20 horas, na Oficina Cultural Oswald de Andrade.
Encenação/ Direção – Cia de Teatro Acidental. Elenco – Artur Kon, Cauê Gouveia, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana Otero e Mariana Zink. Dramaturgia – Artur Kon.
Duração – 80 minutos. Recomendação etária – Maiores de 14 anos. Ingressos – Grátis (retirada uma hora antes da apresentação).
Temporada – Até 16 de fevereiro. Quintas e sextas, às 20 horas e sábados, às 18h30.
Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro. Telefone 11 3222-2662