Premiada como melhor atriz no Festival de Cannes por “Meu Rei”, Emmanuelle Bercot conversou com o Acesso Cultural sobre as filmagens do longa, como foi ganhar o prêmio de Cannes e muito mais. Confira a entrevista na íntegra!
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Você sabia que Maïwenn a tinha em mente para interpretar Tony desde o momento em que terminou de filmar POLISSIA?
Ela nunca tocou no assunto nos dois anos que se seguiram ao lançamento do filme. Então, um dia, ela apareceu com uma parte do roteiro – a parte que se passa no centro de fisioterapia – e me disse que queria que eu fizesse a protagonista do filme dela. Eu fiquei chocada.
Qual foi a sua reação inicial?
Foi ao mesmo tempo empolgante – a perspectiva de fazer um filme com Maïwenn é sempre estimulante para um ator – e irreal. Mas eu só fui mesmo entender a dimensão do que ela estava me pedindo quando ela me deu a versão final do roteiro.
Houve algum momento em que você pensou em recusar?
Sim. Por um bom tempo achei que não deveria ser eu a interpretar Tony e eu disse isso para Maïwenn. Eu dei mil bons motivos para ela: “Você precisa de uma mulher mais bonita, com coxas mais finas etc”. E então ela veio com uma frase para a qual não havia resposta: “Pare de julgar as minhas decisões. Você está falando comigo como uma diretora. O filme é meu, a visão é minha”. Isso bastou para mim. Ela já tinha me dirigido em POLISSIA, eu sabia o quanto ela adora atores. Eu sabia que ela não ia me deixar sozinha, sabia que não ia me abandonar, que ia me dar apoio.
Antes de se tornar diretora, você quis ser atriz e atuou em filmes regularmente. Esse papel principal em MEU REI foi uma espécie de vingança dos seus primeiros anos?
Eu adoro atuar. Eu atuo de tempos em tempos quando me oferecem papéis, mas desde que comecei a dirigir, atuar ficou em segundo plano. Eu não tenho nenhuma frustração quanto a isso, nem feridas a curar. A Tony de MEU REI foi um grande presente de Maïwenn e uma das surpresas da vida, mas de forma alguma uma vingança.
O filme exigiu muita preparação?
Maïwenn queria que eu estivesse em boa forma física. Eu trabalhei muito nisso junto com um instrutor, fazendo muita ginástica com pesos e exercícios de musculação que me ajudaram a ganhar uma boa percepção do meu corpo. Foi importante para a personagem, especialmente nas cenas no centro de educação física, e foi de grande ajuda para mim durante as filmagens. Maïwenn tem um estilo de direção que às vezes faz você se sentir drenado. É como um desafio esportivo: você tem que se esforçar para ultrapassar seus limites. Graças ao treinamento, eu estava mentalmente pronta. Maïwenn também me pediu para passar um tempo trabalhando com uma advogada e me deu dois livros para ler – “Full of Life”, de John Fante, e “O Movimento Romântico”, de Alain de Botton. Sem entender bem a ligação, eu tentei perceber o que chamou a atenção dela e o que ela queria que eu absorvesse para o papel. Sem dúvida que, inconscientemente, eu tirei elementos desses dois trabalhos para alimentar minha performance. Quando ela o escolhe para um papel, Maïwenn também está escolhendo a pessoa que você é. Para me preparar para Tony, também pensei muito neles como casal e mergulhei em algumas memórias da minha própria vida. Foi uma tarefa solitária que consistiu em escavar algumas emoções, certos estados mentais, para extrair material visceral que eu pudesse usar para ser o mais autêntica possível dentro da performance.
Isild Le Basco, que interpreta sua cunhada, trabalhou com você no seu início como diretora. Você a conhece, e já trabalhou com Maïwenn como corroteirista em POLISSIA. Parece que você tem quase uma relação familiar com elas.
Sim, são vínculos muito tangíveis, quase como os de uma família. Eu as conheço há muito tempo e havia algo de muito comovente nessa dinâmica que nos uniu através do filme.
Você diria que Tony é uma vítima?
De jeito nenhum. Nunca há vítima e algoz num casal! Tony tem que suportar muito, mas nunca desiste. Ela luta por seu ideal, que é começar uma família e viver com o pai do seu filho. Eu a vejo como uma guerreira. Mas o vício dela naquele homem impede que veja que a relação é impossível. Ela está se destruindo, mas continua. Ela não consegue controlar.
Fale sobre as filmagens. Você sentiu muita pressão?
Eu estava muito focada e só pensava no filme. A pressão vinha de manhã, quando chegava no set. Enquanto dirigia minha scooter, repetia para mim mesma: “Ela a escolheu, você está onde tem que estar, confie nela, você só tem que dar a ela tudo o que tem”. Quando eu chegava lá, não havia tempo para medo ou análises, eu estava trabalhando, no presente.
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Você discutiu suas cenas com Vincent Cassel?
Nós conversávamos muito sobre como víamos o casal e sobre as relações entre homens e mulheres, mas nunca na tentativa de concordar em como deveríamos interpretar.
Quais cenas você achou mais desafiadoras?
As cenas envolvendo felicidade são sempre traiçoeiras. Você sempre se preocupa se está sendo cliché demais, ou se está exagerando, sendo muito bobo ou romântico. Algumas das cenas de crise também foram difíceis.
Você começou filmando as cenas no centro de fisioterapia, onde Tony revive sua relação com Georgio nos últimos 10 anos.
E foi mais louco ainda porque eu não sabia tudo o que íamos filmar que envolvesse a relação deles ou até onde eu iria. Mas eu sabia bem como representar o sofrimento. Nessa parte, a atuação foi muito física, e eu acho isso fascinante, porque é orgânico. Durante o período de resiliência em que ela está curando suas feridas emocionais ao curar sua perna, Tony faz amizade com um grupo de jovens. Você sente que, apesar de ela ser mais velha do que eles, ainda tem algo da sua alma adolescente dentro de si. Eles a trazem de volta à vida. Graças a eles, ela recupera o gosto pelas coisas simples da vida, como sorrir, sair para caminhar, prazeres infantis até. Estou convencida de que são as crianças quem nos salvam, é isso o que o filme quer nos dizer de uma certa forma. É um renascimento através da energia da juventude, a cura através da descoberta de relações diretas e puras, sem agressões e mentiras, sem nenhum tipo de disputa de poder.
Como foi ganhar o prêmio de Melhor Atriz em Cannes?
Foi incrível. Foi o reconhecimento do trabalho (a personagem de Maïwenn e Etienne Comar, a direção de Maïwenn e a performance indissoluvelmente ligada a Vincent) por pessoas por quem, em sua maioria, tenho uma grande admiração. Depois eu sempre coloco os prêmios em perspectiva – eu nunca teria ganhado o prêmio se o júri fosse outro.
O filme da diretora e roteirista Maïwenn (Polissia), estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 22 de setembro. Imperdível!